Luiz Paulo Faccioli

O amigo de Borges - Adolfo Bioy Casares

Luiz Paulo Faccioli


Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares foram conterrâneos, contemporâneos e amigos. E íntimos a ponto de protagonizarem uma façanha rara, talvez inédita, na literatura de ficção: escreveram a quatro mãos nada menos do que seis livros, quase todos contendo as histórias detetivescas assinadas sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq. Sendo assim, o exercício da comparação entre suas obras individuais, embora via de regra fosse inconveniente, neste caso torna-se pertinente, até mesmo inevitável.

A lista de afinidades inicia-se na predileção pelo conto, e por aí também começam a surgir as diferenças. Enquanto Borges privilegiou a brevidade com uma devoção que sempre o manteve afastado da narrativa longa, Casares experimentou a novela e o romance (um desses títulos, A invenção de Morel, é sua obra mais conhecida e já mereceu três edições diferentes no Brasil). Mas ao lado de Borges, tido como um dos arquitetos na construção do conto moderno, seu amigo nunca logrou ser mais do que um bom contista — o que, diga-se de passagem, não é coisa pouca. O gosto pelo fantástico também os une, e aqui de novo é Borges quem segue na dianteira: a maestria com que El Brujo cria um universo a um tempo mágico e perfeitamente racional faz as tentativas de Casares nesse sentido, em que pese bem-sucedidas, parecerem mero rascunho borgiano. Há ainda a elegância do texto, comum aos dois autores; mas em Borges, também poeta, a objetividade quase ensaística da prosa é quebrada de quando em quando pela intromissão inusitada da poesia, algo tão acidental em Casares que acaba por se confundir com as tantas e intrincadas soluções estilísticas de um discurso que não se preocupa muito em ser objetivo. Há, por fim, a maior das afinidades, a que embaça a importância de todas as outras: tal como o personagem Juan Dahlmann do magistral O Sul, os dois amigos eram “profundamente argentinos”. E, uma vez mais, a característica comum reflete-se de maneira diversa nas respectivas prosas. Casares não consegue conter na escrita o ímpeto loquaz e um certo esnobismo bem típico dos portenhos, além de imprimir uma gravidade exagerada a situações absolutamente corriqueiras — a alma trágica do tango, enfim, ecoando na literatura. Borges, ao contrário, é mais contido; se algum pedantismo houver em sua ficção, ele estará talvez na evocação recorrente de sua vastíssima erudição.
Ante a impiedosa crueza dessas afirmações, o que restaria afinal a Adolfo Bioy Casares senão posar ad aeternum à sombra do amigo Borges?

Para felicidade geral, pelo menos quando se trata de literatura não existem unanimidades. Nem mesmo em torno de Borges, e principalmente se levada em conta a opinião do grande público, para quem o maior dos escritores argentinos é demasiado erudito e, portanto, hermético. E aí então começam a despontar as vantagens que leva Casares nessa peleja desigual. Ainda que o estilo seja mais rebuscado que o de Borges, suas histórias têm uma condução menos sutil e, até certo ponto, mais romântica, algo que as torna um pouco mais populares (é importante que se frise aqui serem estas considerações válidas tão-somente para efeitos da comparação proposta, uma vez que de popular e romântico Casares não tem absolutamente nada). Outro aspecto interessante é que a loquacidade, o esnobismo, a erudição, a superestima do banal são alguns traços que combinam à perfeição com o modo de vida numa época áurea da história do país nosso vizinho e da qual Casares é um cronista do mais competentes.

Bioy Casares vinha sendo editado no Brasil de forma precária e eventual. A Cosac Naify propõe-se agora a corrigir essa omissão: além de relançar o já citado A invenção de Morel, publica aqui pela primeira vez as Histórias fantásticas, antologia lançada originalmente em 1972 e que traz 14 contos que haviam sido publicados em outras coletâneas, jornais e revistas literárias, entre 1944 e 1969. A boa fama da editora paulista de primar pela apresentação de seus livros é mais uma vez reconhecida neste caso: o projeto gráfico de Flávia Castanheira e Luciana Facchini traz capa dura sobre a foto em preto-e-branco de uma calçada de Buenos Aires em 1957 e miolo em papel pólen com belas ilustrações fotográficas. Não menos primorosa é a tradução, assinada por José Geraldo Couto, um dos pontos altos do trabalho. E, algo raro nas antologias, ao final do volume aparecem breves resenhas de cada um dos contos, além da bibliografia completa do autor, num apêndice elaborado por Alexandre Barbosa de Souza. Todo esse cuidado faz com que o leitor abra o livro com a reverência devida a uma grande obra, mesmo que a boa intenção, sem dúvida alguma, tenha sido provê-la das condições ideais para que o texto brilhe — nada menos que o sonho de consumo de qualquer escritor.

A seleção é também bastante significativa. Em primeiro lugar, porque o elemento fantástico comum a esses contos não é uma constante na obra de Casares, mas tem um peso fundamental em sua originalidade. As Histórias fantásticas superam neste aspecto as opacas Histórias de amor, lançadas no Brasil em 1997 numa edição de bolso da L&PM Pocket e cujo vínculo é uma temática bem mais freqüente em Casares — de resto, triângulos amorosos, casos de traição, crimes passionais são os verdadeiros conflitos de suas histórias, sejam elas fantásticas ou não. O fantástico é quase sempre um fator secundário que tanto pode estar na aparição da mulher amada e já morta quanto na capacidade de uma personagem projetar pensamentos e sonhos em mentes alheias. Em alguns momentos, contudo, ele ganha maior relevância. É o caso, por exemplo, de A trama celeste e O grande Serafim, dois dos contos mais famosos do autor. No primeiro, um aviador militar vive a experiência de ser levado acidentalmente a uma dimensão paralela da realidade e depois trazido de volta. Por ser ele o único ponto de contato entre os dois mundos, torna-se suspeito em ambos, e aqui o absurdo adquire cores kafkianas. Em O grande Serafim, o melhor conto deste conjunto, moradores e veranistas de uma pousada litorânea assistem ao desenrolar da hecatombe universal com a atenção voltada aos conflitos comezinhos de suas vidas miúdas, pois, como diz um personagem, “ninguém acredita no fim do mundo”.

Por outro lado, a apresentação dos contos em ordem cronológica permite que se acompanhe a evolução da prosa de Casares ao longo de 25 anos. O que salta aos olhos é uma obviedade: sem abrir mão de um estilo que tendeu sempre ao caudaloso, o discurso foi perdendo excessos e ganhando agilidade no decorrer do tempo, o que aliás é o padrão natural. Por conseguinte, tampouco há surpresa no fato de os contos mais recentes serem formalmente superiores aos mais antigos. Mas também é importante destacar que Casares manteve a integridade de seu estilo apesar de ter trabalhado tão próximo a Borges. Para se ter idéia, no mesmo ano em que Bioy Casares publicava o conto A trama celeste, uma narrativa que tropeça em digressões e aposta na solução não muito eficaz de ter um relato contido em outro, sendo que o de fora serve a explicar o que vem dentro, Borges lançava Ficções, um bom exemplo de sobriedade e economia de elementos. (Uma curiosidade: Casares aparece como personagem em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, o conto que abre uma das obras essenciais de Borges e ironicamente o mais longo daquela coletânea.)

A erudição do autor também fica evidente em Histórias fantásticas, e ela aparece de uma forma bem mais sutil do que aquela à la Borges. Casares traz à atualidade elementos da cultura antiga, criando assim um universo ficcional mágico e atemporal que garante a perenidade de sua obra.

Ao fim e ao cabo, Bioy Casares é um escritor que merece a atenção do público brasileiro. Se não por outro motivo, pelo fato de ele vir sobrevivendo ao peso eterno de ter sido o amigo do grande Borges.

Trecho do livro:

“Em algum lugar li que um apertado tecido de infortúnios lavra a história dos homens, desde a primeira aurora, mas a mim me agrada supor que houve períodos tranqüilos e que por um inapelável golpe de azar me cabe viver o momento, confuso e épico, da culminação. Dirão, talvez, que esse é o clamor, nada filosófico, de um sujeito obscuro e irrelevante; eu replicaria que, justamente porque sou um sujeito obscuro e irrelevante, é curioso, e até significativo, que possa testemunhar sobre mais de um fato tremendo. Sirva de prova: vi, com meus próprios olhos, o fim, a queda, a aniquilação de uma grande dama.”
(do conto A serva alheia)

O autor:

Adolfo Bioy Casares (1914-1999) nasceu e morreu em Buenos Aires, cidade onde viveu por toda a vida, dedicada exclusivamente à literatura. Autor de contos, novelas, romances, textos para teatro e autobiografias, tem obras adaptadas para o cinema e televisão, além de prêmios literários importantes. A amizade com Jorge Luis Borges começou em 1932 e durou até a morte dele, em 1986.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de setembro/2007

 

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